sábado, 15 de dezembro de 2012

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Ausência e Presença: o sexo coberto de signos


Antonin Artaud, protagonista do romance de Silviano Santiago

Em minha leitura de Teoria literária: uma introdução, de Jonathan Culler, chamou-me a atenção a análise de Jacques Derrida da obra Confissões, de Jean-Jacques Rousseau. Segundo Culler, Derrida considera que Rousseau inaugura o senso comum de que a realidade seria a "presença" que motiva os signos, uma "ausência". Porém nas descrições sobre suas aventuras amorosas, Rousseau acaba narrando, sem perceber, que precisamos constantemente  da mediação de signos em relação a pessoa amada independente de sua presença ou ausência. Disso Derrida concluirá que "Não há nada fora do texto", pois a realidade, ao invés de motivar os signos, é motivada por ela.

Achando mais interessante do que a conclusão de Derrida, a ideia de que as relações amorosas entre os indivíduos, especialmente o sexo, são cobertas de signos me levou a uma divagação sobre o trecho que cito a seguir do romance Viagem ao México, de Silviano Santiago. O protagonista do romance, o ator e dramaturgo Antonin Artaud, explicita a relação entre ausência e presença em que o signo não é mais um mediador do sexo, mas sim o próprio espaço onde a sexualidade é exercida:

"Te digo que a descrição de um corpo humano em palavras, em palavras que se adentram pelas partes erógenas do corpo, nomeando-as, me excita tanto quanto o prazer de tocar um corpo de carne e osso para seduzi-lo e penetrá-lo, ou ser penetrado por ele. A sexualidade ou passa pelos olhos e é palavra, ou passa pelos olhos fechados e pelo tato, e é corpo. Nunca uma imagem, imaginação. Posso até usar a imagem para erotizar o outro que está ao meu lado, isso quanto este outro não está querendo ser erotizado pelas minhas mãos. No relacionamento a dois, a imagem é um terceiro ausente e abstrato que pouco me motiva. Na solidão, masturbo-me com a ajuda de palavras concretas, de narrativas pornográficas que vão descrevendo situações obscenas da carne que deseja e que se oferece ao apetite do outro; no caso, a mim, leitor daquelas palavras."
(Silviano Santiago, Viagem ao México)

Há uma verdadeira pornografia (sem o sentido pejorativo do termo) entre o significante e o significado sem a qual não existiria o sexo como o compreendemos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Cioran: a modernidade no auge do pessimismo


"O homem tem todas as chances de desaparecer e desaparecerá mais cedo do que pensa, mas, por outro lado, tem toda a razão em prolongar essa tragicomédia, nem que seja por distração ou por vício."

"Não queremos mais suportar o peso das "verdades", continuar sendo suas vítimas e seus cúmplices. Sonho com um mundo que se morreria por uma vírgula."

"Ser um Raskolnikov- sem a desculpa do homicídio."

‎" O real me dá asma."

"Graças à melancolia- esse alpinismo de preguiçosos- escalamos da nossa cama todos os cumes e sonhamos de todos os precipícios."

"O que arruína a alegria é sua falta de rigor; contemple, por outro lado, a lógica do fel..."

"O Desespero é o descaramento da desgraça, uma forma de provocação, uma filosofia para épocas indiscretas."

"Ninguém pode conservar a solidão se não sabe fazer-se odioso."

"Só vivo porque posso morrer quando quiser. Sem a ideia do suicídio já teria me matado há muito tempo."

"No pessimista se combinam uma bondade ineficaz e uma maldade insatisfeita."

"Se acreditasse em Deus, minha fatuidade não teria limites: passearia nu pelas ruas..."

"A arte de amar? Saber unir  a um temperamento de vampiro a discrição de uma anêmona."

"Sem Bach, a teologia seria desprovida de objeto, a Criação fictícia, o nada peremptório.
Se há alguém que deve tudo a Bach esse alguém é Deus."

"A música é o refúgio das almas feridas pela felicidade."

"Evolução: Prometeu, hoje em dia, seria deputado da oposição."

"Uma espiada no itinerário da civilização me dá uma presunção de Cassandra."

"O segredo de minha adaptação a vida? Mudei de desespero como quem muda de camisa."

"A Verdade? Encontra-se em Shakespeare; um filósofo não poderia apropriar-se dela sem explodir com seu sistema."

"Apenas adolescente, a perspectiva da morte me horrorizava; para fugir dela corria ao bordel ou invocava anjos. Mas, com a idade, nos habituamos a nossos próprios terrores, não fazemos mais nada, nos aburguesamos no Abismo. E se houve um tempo em que invejas esse monges do Egito que cavavam suas tumbas para chorar sobre elas, se cavasse a minha agora seria apenas para jogar pontas de cigarro."

(Emil Cioran, Silogismos da amargura)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

"Les mots, les choses" : a linguagem poética para Jean-Luc Godard


Anne Wieazemsky (Veronique) e Jean Pierre Leaud (Guillaume)
em "La Chinoise", de 1967

Guillaume: " 'A juventude é uma chama de ódio, amor, tristeza, felicidade.' Disposto a abrir seu coração ao amor, como uma inválida, Oneguin...

Veronique: Oneguin.

Guillaume: ...Oneguin, com um olhar sério, escutava as inconfidências do poeta que, ingenuamente, revelava sua cândida consciência." Eu queria ser cego.

Veronique: Por quê?

Guillaume: Para falarmos melhor um com o outro; prestaríamos mais atenção.

Veronique: Como?

Guillaume: Usaríamos a linguagem de forma diferente. Em dois mil anos as palavras as palavras mudaram de significado.

Veronique: E daí?


Guillaume: Conversaríamos mais seriamente um com o outro. Isso significa que os significados mudariam as palavras.

Veronique: Sim, concordo. Falar como se as palavras fossem som e matéria.

Guillaume: E isto é o que elas são... Veronique.

Veronique: Certo, vamos tentar.

Guillaume: Na margem do rio.

Veronique: Verde e azul.

Guillaume: Ternura.

Veronique: Um pouco de desespero.

Guillaume: Depois de amanhã.

Veronique: Talvez.

Guillaume: Teoria da literatura.

Veronique: Um filme de Nicholas. Ray.

Guillaume: Os-jul-ga-men-tos-de-Mos-cou.

Veronique: Pássaro vermelho.

Guillaume: Rock... and roll.

Veronique: Et cetera.

Guillaume: Et cetera?

Veronique: Sim...

Guillaume: Eu te amo, você sabia?


(cena de  "La chinoise", 1967, com roteiro e direção de Jean-Luc Godard)

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Imagens obsessivas, narrativas labirínticas



"Pronto o labirinto, Dédalo sentiu que jamais seria capaz de fazer outro labirinto. Era sempre assim quando acabava uma obra, Depois vinha-lhe outra ideia, outra obra nascia. Agora tinha a certeza de que era diferente, tinha de esquecer aquele labirinto. Mesmo esquecendo, sabia que, quando tivesse de fazer outro labirinto, o risco seria igual ao primeiro. Porque tinha o labirinto dentro de si. Da mesma maneira que um caracol, por mais diferente que seja dum caramujo, sempre tem como ele alguma coisa de comum. Sempre foi assim? Mesmo aquele primeiro labirinto não seria uma repetição dum outro labirinto que ele viu não sabia onde e se esqueceu e depois sonhou e só se sonha aquilo que se tem dentro de si bem enterrado e esquecido? Da mesma maneira que um árvore já está toda inteira dentro da sua semente, aprisionado. Dédalo agora se perdia nos corredores de ideias labirínticas. Ele estava perdido antes de qualquer condenação.

Finalmente Dédalo chegou à inevitável conclusão de que labirinto nada mais é do que a aventura da ordem."

(Autran Dourado, Meu mestre imaginário)

terça-feira, 19 de junho de 2012

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) Bachelard, repercussão e o Übermensch bandeiriano


Der Wanderer über dem Nebelmeer-  Caspar David Friedrich- 1818 


Acho que uma das ideias que mais me fascinaram em Bachelard é conceito de repercussão, que, dentro de sua proposta para uma "fenomenologia da alma", trata da apropriação da poesia pelo leitor. Li  sobre esse isso na introdução do A Poética do Espaço, onde o filósofo  trata a poesia como possuidora de uma "alotropia" fenomenológica que se apresenta em dois níveis: 1) o da ressonância, em que as imagens do poema dispersam-se pelo mundo, ouvimos o poema; 2) o da repercussão, em que as imagens do poema se  aprofundam na nossa experiência, o poema é nosso.

Para mim, o conceito de repercussão explica porque ficamos mesmerizados frente algumas obras artísticas. Tal processo, onde ocorre uma "inversão do ser", em que "o ser do poeta é o nosso ser", o poema "nos toma por inteiro" despertando a "criação poética na alma do leitor". É como ler algo que atinge de tal maneira as "profundezas" do nosso inconsciente que aquelas palavras se tornam nossas e passam a ter significado como se nós mesmos tivéssemos escrito.

É uma exposição bem econômica do que a repercussão bachelardiana significa. Ainda assim, você que me lê agora, se é obcecado por arte em geral, como eu, já pensou em algum  romance, poema, música, filme, pintura, etc, do qual constantemente revisita para dele/dela se apropriar de tal maneira que a obra já não é somente feita para você, e sim feita por você, ainda que seu papel tenha sido aparentemente de receptor.

Em meu atual devaneio (para novamente homenagear Bachelard), isso é resultado da fantástica característica da Arte de chamar o receptor para concretizar a obra (Wolfang Iser?). Nessa perspectiva, a Arte deixa de ser uma mera comunicação unidirecional para se tornar interativa. O receptor participa, cria e, se as imagens (no sentido bachelardiano) resultantes simbolizarem algo para este sujeito, respondendo algumas questões presentes em seu inconsciente, elas deixam de simplesmente ressonar no nível do intelecto para repercutir nas "profundezas da alma".

Um exemplo que eu costumo dar do processo de repercussão na minha trajetória de leitor é o romance O Estrangeiro, de Albert Camus. O arquétipo de "outsider", na perspectiva niilista que Camus coloca no personagem-símbolo Mersault, é algo que eu ainda não consigo intelectualizar plenamente. Já li esse romance algumas vezes e, ainda que eu aponte algumas questões, tal obra vai para além de uma simples ressonância, no sentido de compreensão, estando muito mais relacionada ao nível da repercussão: esse romance é meu, não o escrevi mas é como se eu o tivesse escrito.  

Outro bom exemplo, que tem me consumido há pelo menos uma semana e motivou esse post, é o seguinte poema de Manuel Bandeira, presente no livro Lira dos Cinquen'anos:


Soneto inglês nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e do pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer nem de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.


Leio e releio esse poema como a uma insight do Übermensch nietzschiano pela ótica de Bandeira. Eu particularmente não li nada sobre a relação do poeta brasileira com o filósofo alemão, e também isso  é secundário, pois mais me  importa aqui que eu fiz tal relação. 

A primeira vez que li esse poema foi como cair em um abismo. Li e reli e reli e reli e continuo relendo e a cada nova leitura novos sons,  novas imagens, novas percepções e novas perguntas surgem no meu ser. 

Permitindo-me uma paráfrase alucinada do poema, é a aceitação da incontingência da vida não por uma moral escrava e submissa, mas por uma moral aristocrata e altiva; é a dor surda transformando-se em grito; é o fim de uma vida frugal e mundana a volta da condição que nos faz humanos;  é o fim da esperança, do espanto e do desejo: a ascese de um santo sem a perspectiva de além-mundo. É, por fim, a morte.

Esse final é maravilhoso sonoramente. Não raro me surpreendo recitando em voz baixa "[...] que a vida/ não vale a pena e a dor de ser vivida." A estranheza de sua construção me joga para um verdadeiro devaneio onde esses versos já não são mais de Bandeira, são meus.

Para concluir reafirmando o que Bachelard já escreveu, penso constantemente que esse é o poema que eu gostaria de ter escrito e que nunca escreverei. Nada mais bandeiriano: é a "vida inteira que podia ter sido e não foi". Mas, pela repercussão, compreendo que não preciso escreve-lo, pois já o escrevi e ainda por muito tempo o reescreverei.

sábado, 26 de maio de 2012

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Henri Matisse ou a Fenomenologia da Alma


Joie de Vivre- 1905

“É somente mais tarde, durante o dia, quando me encontro numa galeria de arte na Rue de Sèze, cercado pelos homens e mulheres de Matisse, que sou novamente arrastado para os limites apropriados do mundo humano. No limiar daquele grande salão cujas paredes estão agora em chamas, paro por um momento para recuperar-me do choque que se experimenta quando o habitual cinzento do mundo é rasgado e a cor da vida salta para frente em canto e poema. 
(...)
Em pé, no limiar do mundo que Matisse criou, voltei a experimentar a força da revelação que permitiu Proust deformar tanto o quadro da vida; somente aqueles que, como ele próprio, são sensíveis a alquimia do som e do sentido são capazes de transformar a realidade negativa da vida nos contornos substanciais e significativos da arte. Só os que são capazes de admitir a luz em suas entranhas podem traduzir o que há no coração."

(Henry Miller. Trópico de Câncer)

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Realidade, Sonho e Milhares de Rimbaud pelas ruas de Paris


"Porque a vida real está em outro lugar. Os estudantes arrancam os paralelepípedos das ruas, viram carros, constroem barricadas; sua irrupção no mundo é bela e ruidosa, iluminada pelas chamas e saudada pela explosão de bombas de gás lacrimogênio. Quão mais doloroso foi o destino de Rimbaud, que sonhava com as barricadas da Comuna de Paris e nunca conseguiu ir além de Charleville. Mas, em 1968, milhares de Rimbaud têm as suas próprias barricadas atrás das quais se colocam e recusam qualquer compromisso com os antigos donos do mundo, A emancipação do homem ou será total ou não acontecerá.

Mas a um quilômetro dali, na outra margem do Sena, os antigos donos do mundo continuam a viver a sua vida e a confusão do Bairro Latino chega-lhes como uma coisa longínqua. O sonho é realidade, escreviam os estudantes na parede, mas parece que a verdade seria mais o contrário: aquela realidade (as barricadas, as árvores cortadas, as bandeiras vermelhas) era o sonho."

(Milan Kundera. A Vida está em outro lugar)