sexta-feira, 26 de julho de 2013

(IMAGINÁRIO EM QUADRINHOS) "O Inescrito", de Mike Carey e Peter Gross: mito, literatura e quadrinhos (pt.1)




O Inescrito na linha editorial da Vertigo

Lucifer n.1
Em dezembro de 2012, o selo Vertigo no Brasil, pela editora Panini, começou a lançar em formato de encadernado a série O Inescrito, de Micke Carey e Peter Gross, a mesma parceria artística de série Lucifer, derivada do universo ficcional de Sandman.

O inescrito conta a história de Tom Taylor,  o modelo de seu pai, o renomado escritor Wilson Taylor, para a criação do personagem bruxo  de sucesso mundial "Tommy Taylor" (ao estilo Thimoty Hunter e Harry Potter). Wilson Taylor, artista recluso ao estilo Ingmar Bergman, desapareceu há alguns anos sem entrar em contato com o filho e deixando a série de literatura fantástica Tommy Taylor sem conclusão após 13 livros. Tom vive da divulgação das obras do pai, que possuem uma legião gigantesca de fãs, até que o acusam de não ser o filho verdadeiro de Wilson. A busca sobre a sua verdadeira identidade, busca essa que vai para os limites do fantástico quanto mais ele se identifica com o personagem ficcional do pai, é o tema que da unidade a série que ainda continua nos Estados Unidos.

O pergunta que move a história de O Inescrito é o seguinte: qual é o poder da ficção, da literatura? Contar e ler histórias tem somente a função de diversão ou é algo mais? Com estas indagações, Carey e Gross iniciaram a série que se insinua como a sucessora de uma tradição de sucesso da linha editorial da Vertigo, que tomou forma em Sandman,de Neil Gaiman,e ganhou estabilidade com Fábulas, de Bill Willigham. 

Sandman Edição Definitiva vol.1
Sandman é uma história de uma entidade atemporal que seria responsável pelo Reino do Sonhar, espaço extrafísico de onde emanariam as forças oníricas que alimentam todas as histórias. Fábulas é uma história sobre os personagens dos contos de fada se exilando no mundo real devido a invasão de um inimigo desconhecido às Terras Natais, um espaço extrafísico em que todos os personagens literários de todas as culturas vivem. 

Fábulas v.1- Lendas no Exílio
Em Sandman o Reino do Sonhar é uma metáfora declarada do conceito de inconsciente coletivo de Carl Jung, da noção de que todas as narrativas que contamos, dos antigos mitos a literatura, derivam do instinto humano de sonhar o mundo. Fábulas avança o conceito de Reino do Sonhar , criando o universo das Terras Natais como uma metáfora que se aproxima do conceito o de Imaginário de Gilbert Durand, da ideia de reunir em um conceito de maneira ampla e atemporal o conjunto de todas as histórias compartilhadas em todos os tempos que contamos e recontamos, dos mitos aos contos de fadas e literatura contemporânea.

Tanto em Sadman quanto e Fábulas os quadrinhos já estão há anos luz dos simplificados panteões de heróis da Era de Ouro. Não há mais personagens com roupas colantes e motivações duvidosas. Há protagonistas fantásticos com suas próprias ambições que muitas vezes passam por cima do nosso pobre universo mortal. É o avanço dos quadrinhos para a fundação de verdadeiras mitologias contemporâneas que Alan Moore inaugurou com sua releitura gótica e fantástica de Monstro do Pântano.

É essa tradição dos quadrinhos adultos anglo-americanos que O inescrito busca continuar, tradição esta que este que agora escreve admira demais. É a tradição que busca uma no quadrinhos profunda imersão no universo literário do fantástico e do maravilhoso, mas uma imersão que não deixa de incluir uma reflexão racional dentro da narrativa sobre qual é a função desse fantástico e desse maravilhoso para o homem.

Dentro dessa tradição, O Inescrito é um novo passo, que se vale da erudição de Carey, que eu já tinha percebido lendo Lúcifer, para refletir sobre a importância  do mito e da literatura para o homemaproximando inteligentemente a literatura com o mito sem perder de vista os aspectos da cultura contemporânea, ao mesmo tempo que reflete sobre os perigos do mito e da imaginação quando utilizada para a alienação.

A forma de O inescrito: a arte de Peter Gross e os "ruídos" da Era da Informação na linguagem dos quadrinhos

Eu conheço o trabalho de Peter Gross de Os Livros da Magia e Lúcifer. Acho ele muito bom, mas especialmente em O inescrito  ele consegue alcançar uma correlação entre  forma e o conteúdo que eu acho que merece atenção.

No decorrer dos números da série, a história dos livros do bruxo Tommy Taylor é contada em paralelo as aventuras de Tom. Carey originalmente pensou em inserir essas narrativas em forma de texto literário.  Gross resolveu abraçar o desafio de transpor o ritmo do texto literário para a linguagem dos quadrinhos. O resultado é surpreendente.

Na narração das aventuras do bruxo Tommy, as descrições do cenário foram suprimidas, apesar de a narrativa em terceira pessoa prevalecer em cada quadro. Essas narrações não aparecem na tradicional "caixa" utilizada nos quadrinhos, estando dentro da própria cena. Os diálogos ficam inseridos nos balões e, quando comentários do narrador aparecem entre uma fala e outra, eles são inseridos no quadrinho entre os balões. Com essa relação entre a forma escrita da literatura e a forma dos quadrinhos, a sensação que tenho  é de estar lendo os livros das aventuras de Tommy Taylor, sendo os quadrinhos as imagens que minha imaginação constrói do que é narrado.

Gilbert Durand, em O Imaginário, alerta sobre os o "congelamento" que a imagem imagética (a imagem "realista" da máquina fotográfica) pode causar a imaginação. Gross é um artista que está longe desse perigo. Além dessa ótima relação formal que ele estabelece entre a linguagem literária e linguagem dos quadrinhos, o estilo de desenho de Gross está muito mais próximo do "icônico" e do "abstrato", para utilizar os termos do quadro semiótico aplicado aos quadrinhos proposto Scott McCloud em Desvendando os quadrinhos.

Gross não está preocupado com o "realismo":  tanto no desenho dos personagens quanto no do cenário muitas vezes há somente traços mais gerais para "gestalticamente' sugerir pessoas e ambientes. O traço mais simples dele já tinha me marcado em Lúcifer, mas em O Inescrito essa simplicidade possui forte relação com  conteúdo.

O Inescrito é uma história fantástica, e o fantástico entra tanto no conteúdo quanto na forma, pois o "icônico" é o "abstrato" afastam a neutralização da imaginação que a  imagem imagética causa pelo seu "realismo".

Um outro elemento interessante na forma de O inescrito é a inserção de "janelas" de web com notícias e fóruns de discussão sobre o que o leitor lê durante as aventuras de Tom. Nessa história em quadrinhos, a forma insere os rúídos da Era da Informação. Em algumas partes de O inescrito, sinto como se estivesse lendo os quadrinhos em uma janela do computador enquanto acompanho em outras janelas do computador comentários sobre os acontecimentos, algo que o pessoal das gerações mais novas está acostumado a fazer.

Essas inserção do visual digital do computador nos quadrinhos não é gratuita. Em paralelo a história fantástica que o leitor acompanha nas páginas de O inescrito, os ruídos digitais demonstram a devoção quase "religiosa" que os fãs de Tommy Taylor em relação a Tom . A sociedade de O Inescrito vive com em relação ao personagem Tom como os antigos viviam com seus mitos, porém essa relação não se dá mais em torno de uma fogueira, mas sim em frente a tela de um computador. Lendo as discussões pela internet que a história em quadrinho insere no decorre da narrativa, é perceptível que Tommy/Tom Taylor é um personagem mítico, de profundo alcance simbólico na imaginações de milhões de seus leitores, e vem em Tom o seu ídolo ficcional encarnado no mundo real.

Tom é uma espécie "Jesus Cristo" do século XXI, o Verbo tornado em carne versão 2.0 que "roda" pela plataforma digital.  Essa uma das grandes sacadas de Carey e Gross. A inserção do digital em O Inescrito ressalta que, mesmo em um mundo altamente modernizado, o pensamento mítico está sempre presente. Um exemplo da união de estruturas  "sagradas" do pensamento mítico com estruturas "profanas" da tecnologia moderna na história é o culto criado na internet "Tom é Tommy", que o leitor acompanha se alastrando pelos fóruns de discussão como um típico viral digital

No próximo post da coluna IMAGINÁRIO EM QUADRINHOS, refletirei sobre os aspectos do conteúdo de O inescrito. Seguirei na ideia Tom como um "Jesus Cristo" do século XXI. Para mim, na história deste quadrinho Tom carrega o simbolismo de um redentor, mas de um redentor longe da conotação conciliadora judaíco/cristã, sendo um símbolo de enfrentamento frente aos poderes dogmáticos que pretendem controlar as possibilidades infinitas da imaginação humana. Assim , demonstrarei como vejo o personagem Tom se aproximando miticamente das figuras de Prometeu e Lúcifer (tal como lidos pela geração romântica) apontando algunse elementos que Gross e Carey repetem constantemente na narrativa dos três encadernados até agora lançados no Brasil.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) O horror cósmico nos devaneios antárticos de Lovecraft

Moun of Five Treasures -  Nikolai Rerikh 

"Nossos sentimentos de expectativa enquanto nos preparávamos para dar a volta na crista e vislumbrar um mundo inexplorado mal se deixavam escrever no papel, embora não tivéssemos motivo para suspeitar que as regiões para além da cordilheira fossem diferentes daquelas já vistas e atravessadas. O toque de mistério perverso na barreira de montanhas e no convidativo mar de céu opalescente vislumbrado por entre os cumes era um assunto demasiado sutil e tênue para ser descrito em palavras. Antes, pareciam repletos de vago simbolismo psicológico e indefiníveis associações estéticas - algo relacionado a poesias e pinturas exóticas, e a mitos arcaicos à espreita em tomos proibidos e execrandos. Até mesmo o vento carregava um traço peculiar de malignidade consciente; e por um instante tive a impressão de que o som composto incluía um bizarro uivo ou assovio musical com notas em várias frequências enquanto a rajada soprava uma sugestão difusa de repulsa reminiscente nesse som, tão complexa e inefável quanto qualquer outra dessas impressões sombrias."

(Nas montanhas da loucura, H.P. Lovecraft)

sexta-feira, 22 de março de 2013

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) A ficção científica de Ray Bradbury: a relação especular em "As crônicas marcianas"


Fazem já alguns anos que me vejo às voltas com o romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, desde a primeira vez que vi a adaptação de François Truffaut para o cinema em uma disciplina sobre memória ministrada pelo professor e amigo Éder Silveira no curso de História do Centro Universitário Metodista IPA. De lá para cá,  tornei-me um ávido consumidor de ficções distópicas e ressuscitei  minha paixão juvenil  por ficção científica que no auge dos meus 12 anos eu saciava com Isaac Asimov e H.G. Wells.


As crônicas marcianas, de Ray Bradbury

No final do ano de 2012 tomei conhecimento que um livro de contos de Bradbury, As crônicas marcianas, possuía uma versão de bolso pelo Editora Globo no mesmo formato do meu exemplar de Fahrenheit 451 (já lido e relido). Encomendei na hora e, após algumas andanças na fila das minhas leituras, finalmente cheguei nesse livro. Novamente, estou às voltas com um texto do romancista americano, e esse longo ensaio que aqui publico faz parte de uma reflexão inicial minha da relação entre a literatura fantástica e os mitos.

As crônicas marcianas, lançado originalmente 1950,  é uma reunião de contos que, em conjunto, formam uma espécie de romance sobre a colonização humana em Marte. Inicialmente, as primeiras três expedições encontram resistência por parte dos marcianos, mas, com a Quarta Expedição, os humanos se instalam em Marte e começam a reproduzir os seus modos de vida no planeta vermelho. Novos conflitos surgem entre os habitantes do planeta e os terráqueos. O projeto de colonização acaba com a explosão de uma nova grande guerra na Terra, obrigando todos os terráqueos a voltar para seu planeta natal. 

As viagens espaciais para Marte iniciam no universo ficcional dos contos em Janeiro de 1999. Bradbury projeta sua ficção científica para 50 anos depois do tempo em que produz seus textos, e o ambiente melancólico do futuro do homem encontrado em As crônicas marcianas, com uma humanidade alienada pelo conhecimento técnico-científico  e a beira de uma guerra nuclear, será reaproveitada posteriormente para a ambientação distópica na qual o personagem Montaigne vive em Fahrenheit 451.


A prosa fantástica de Ray Bradbury: a economia verbal 

A primeira coisa que me chamou a atenção nos contos foi a forma como Bradbury "naturaliza" o fantástico através de sua narração. No segundo conto, de nome "Ylla", datado como ocorrido em fevereiro de 1999, um mês após a saída do foguete da Primeira Expedição para Marte, conta-se a história de um casal marciano em que a mulher sente a chegada dos terráqueos em solo marciano. Encontrei assim já no segundo conto o auge do fantástico da obra: existem vida em Marte semelhante a humana que vive em uma organização social mais ou menos parecida com a da Terra.

A beleza desse conto, para mim, é a forma como Bradbury narra essa realidade surreal que existe em Marte. Ao invés de longas explicações sobre elementos econômicos, sociais e orgânicos, a palavra de Bradbury, por sua economia que lembra muito a linguagem épica, simplesmente nomeia esse mundo. É assim que a personagem senhora K é encontrada pelo narrador onisciente em uma "casa de pilastras de cristal" saboreando  todas as manhas "frutos dourados que cresciam em paredes de cristal" ou "limpando a casa de poeira magnética que se grudavam à sujeira". É assim também que o senhor K é visto em sua sala de leitura "lendo um livro de metal com hieróglifos em relevo sobre os quais passava a mão, como se toca uma harpa. E o livro, à medida que seus dedos o percorriam, cantava uma voz suave." No inicio da narrativa também fica-se sabendo que esse casal descende de um povo que já vive em Marte há dez mil anos.

Sem desdenhar a imaginação do leitor, Bradbury faz esse casal passear pelo céu estrelado de Marte em um liteira puxada por pássaros de fogo que sobrevoa as ruínas de uma civilização. Quando vão dormir, deitam uma uma névoa que, ao amanhecer, derrete-se e os pousa levemente no chão. Não há grandes explicações, a fantástico acontece, chegando próximo do maravilhoso. É assim que, frente a uma realidade completamente diferente, o estranhamento  do que está sendo lido sobre um casal marciano passa a aceitação não pelo excesso de explicações, mas pela economia delas.

Há outros elementos formais que se mantem  constantes nos contos posteriores, como a inserção de citação de músicas populares e poemas. Aqui a tradução da minha edição realizada por Ana Ban cometeu um tremendo erro amador ao traduzir em alguns contos os títulos e os versos das músicas e dos poemas e em outros não. 


A colonização de Marte: o mito de Narciso e o imaginário colonialista 

Uma elemento importante desse conto, é que será uma obsessão em quase todos os contos posteriores (em linguagem mitocrítica, é um mitema central desses contos) é a relação os especular dos humanos com  Marte. É a situação mítica de Narciso, que vê o seu reflexo mas não compreende que a imagem que enxerga é ele mesmo. As grande navegações, atualizadas para as viagens espaciais, continuam reproduzindo o que já aconteceu várias vezes antes: o homem projeta no outro aquilo que há em si mesmo, mesmo sem saber, e buscar moldar o outro a partir dessa projeção.

Considero então que os contos de Bradbury em As crônicas marcianas reaproveitam o imaginário das grandes navegações dos séculos XV e XVI do homem Ocidental e o aplica as viagens espaciais. Como diz a epigrafe do livro: " 'É sempre bom renovar o nosso senso de espanto', disse o filósofo. 'As viagens espaciais nos transformam em crianças novamente. " Desbravado e desmitificado o continente terrestre, resta então ao homem projetar sua imaginação para o espaço e para o planeta mais próximo. Como ocorre essa projeção é o tema de Bradbury, no qual não deixa de aliar uma visão crítica do imaginário colonialista com elementos simbólicos da mitologia.

"Os homens da terra" e "A terceira expedição": a resistência do colonizado manipulando o espelhamento do colonizador

Fracassada a primeira expedição, uma nova é enviada para Marte, chegando em agosto de 1999 no conto "Os homens da terra".  A Segunda Expedição chega a Marte e, encontrando a civilização marciana, pensa que será bem recepcionada. Após uma série de frustrações, são enviados a um sanatório e lá descobrem, vendo que estão juntos de outros marcianos que conseguem criar diversas materializações de suas fantasias, que os marcianos pensam que eles são loucos que mudaram sua forma e construíram sua nave com  poder da imaginação. Nesse conto, as fronteiras entre o que é real e a fantasia chegam aos extremos, pois os marcianos, graças a telepatia, conseguem dar realidade sensorial aos seus devaneios.

Após o fracasso da Segunda Expedição, uma nova expedição é enviada. Os marcianos, agora conscientes da existência dos terráqueos, utilizaram a relação especular dos colonizadores com o novo mundo como arma de defesa. No conto "A terceira expedição", que chega em marte em abril de 2000, o foguete dos terráqueos pousa uma cidade igual em todos os detalhes a uma pacata cidade do interior dos Estados Unidos. O capitão da expedição, John Black, percebe que aquela cidade é semelhante espacialmente e temporalmente a cidade de Ilinnois de 1920, cidade onde nasceu e cresceu. Outros tripulantes do foguete também reconhecem elementos da suas cidades da infância e, aos poucos, todos começam a encontrar parentes já mortos e dispersar da expedição. O capitão, inicialmente desconfiado, acaba aceitando a situação fantástica quando vê seu irmão mais velho, morto a muitos anos.

Após passar o dia com sua família, o capitão John Black vai dormir junto com o irmão  no quarto de sua infância. É deitado no escuro que ele percebe o plano os marcianos:

(...) supunha, então, que existam marcianos vivendo em Marte que viram nossa nave chegando, enxergaram nossa nave e odiaram. Suponha, então, só por que sim, que tenham vontade de nos destruir, os invasores, os visitantes indesejados, e que queiram fazê-lo de maneira muito inteligente, pegando-nos desprevenidos. Bom, qual a melhor arma que uma marciano poderia usar contra um terráqueo com armas atômicas? A resposta era interessante: Telepatia, hipnose, memória e imaginação. (p.85) [grifo meu]   
Os marcianos produzem um universo imaginário para a Terceira Expedição em que eles vivem o mundo idílico das memórias da infância, o "espaço feliz" em que os homens projetam seus mais inocentes devaneios. Desarmados mentalmente por suas próprias lembranças, os terráqueos são mortos pelos marcianos.

Essa ideia da resistência ao colonialismo através da apropriação da projeção especular do colonizador sobre o colonizado será reutilizada pelo diretor e roteirista russo Andrei Tarkovski em Solaris. A diferença é que a resistência do planeta Solaris aos colonizadores humanos é dar realidade sensorial aos grandes temores dos colonizadores, e não a memórias felizes,  levando-os a loucura ao reviver experiências traumáticas internalizadas em seus inconscientes.


".... E a lua continua brilhando": o duplo e a cultura marciana

Mesmo resistindo, os marcianos acabam sucumbindo aos terráqueos de maneira semelhante aos ameríndios durante a colonização : por uma doença. É isso que se descobre no  conto "... E lua continua brilhando", em que a Quarta Expedição chega em junho de 2001 em uma Marte desolada e cheia de corpos de marcianos com sinais de catapora.

Nesse conto há um personagem que será o protótipo do personagem Montagne em Fahrenheit 451, o arqueólogo Jeff Spender. Integrante da Quarta Expedição, Spender vai, aos poucos, percebendo a grandeza da cultura milenar que existiu em Marte e prevê que tudo isso seria destruído pelo exemplo que a humanidade já deu durante sua história na Terra. A narrativa alterna entre a perspectiva de Spender e do capitão Wilder, comandante da quarta expedição, que concorda com Spender, mas ainda assim fica relutante.

Em um diálogo entre Spender e o capitão Wilder, o primeiro demonstra seus medos frente a colonização terráquea em Marte:

[...] há evidências de muitas coisas feitas em Marte. Há ruas e casas, há livros, imagino, grandes canis, relógios e estábulos, se não forem para cavalos, bom então são para algum outro tipo de animal, quem sabe de doze patas? Para qualquer lugar que olho, vejo que as coisas foram usadas, tocadas e manuseadas durante séculos. [...] Estão todas aqui. Todas as coisas que tiveram alguma função. Todas as montanhas que tiveram nomes. E nunca seremos capaz de usá-las sem nos sentirmos desconfortáveis. [...] Por mais que nos aproximemos de Marte, nunca o tocaremos. E ficaremos bravos por isso, e o senhor sabe o que vamos fazer? Vamos despedaçá-lo, arrancar sua pele e transformá-lo a nossa imagem e semelhança. (p.97)
Conversando com seu duplo, (Spender e Wilder são duas facetas de um mesmo personagem, sendo que essa duplicação está  também relacionada também ao mito de Narciso), Spender demonstra compreender que a relação especular entre o colonizador e o colonizado, na projeção dos anseios daquele que vem dominar contra a realidade do dominado, o último esta fadado a desaparecer, pois é um estranho que gera raiva . Nessa relação, o Outro é apagado e submetido as idealizações do Sujeito colonizador, o que para Spender é catastrófico, pois a civilização marciana é para ele perfeita.

Após conflitos com alguns membros da expedição, Spender se afasta do grupo e começa a estudar a cultura da civilização marciana. Uma semana depois, Spender volta considerando-se o último marciano e mata seis integrantes da expedição, uma tentativa de retardar a colonização terráquea em Marte. Uma caçada se inicia e, já cercado, desenvolve-se um novo diálogo com o seu duplo, o capitão Wilder, em que ele demonstra sua visão  da cultura marciana:
"Os marcianos descobriram o segredo da vida entre os animais. [...] são símbolos divinos, símbolos da vida. O homem tinha se tornada homem demais e animal de menos em Marte, também. E os homens de Marte perceberam que, para sobreviver, precisariam parar de se perguntar: Por que viver? A vida era a resposta. (p.116)
A cultura marciana, com função explicitamente simbólica e terapêutica para a existência da sociedade a qual pertenceu,  existira em Marte a partir de uma combinação da arte com o estilo de vida dos marcianos, o que para Spender "sempre foram duas coisas separadas para os americanos". Assim, a civilização marciana seria uma cultura ideal, pois a arte marciana era vivida no íntimo dos indivíduos, mobilizando uma elaborado imaginário simbólico, ao contrário das civilizações modernas, que consideram que "A arte era uma coisa que ficava guardada no quarto do filho maluco, no andar de cima".

Spender acaba sendo morto pelas mãos do capitão Wilder, que percebe ser o seu duplo ao entender que Spender deixou que ele o matasse para que Wilder seguisse a resistência a invasão humana à Marte : "Se ele imaginou que havia algo em mim que era como ele, e não conseguiu me matar por causa disso, então terei muito trabalho pela frente! É isso, pronto, é isso. Agora faço o mesmo que Spender, mas penso antes de atirar" (p.123) Mas, como o leitor ficará sabendo em contos posteriores, o capitão Wilder acaba sendo enviado para uma expedição a Júpiter por suas ideias heterodoxas em relação a colonização em Marte.

"Os gafanhotos" e "Os músicos": o apagamento do diferente

Com a Quarta Expedição, a colonização terráquea em Marte efetivamente se inicia. No pequeno conto "Os gafanhotos" a construção do mundo marciano nos modelos terráqueos começa a tomar forma:
Os foguetes chegavam como gafanhtos, em enxames, formando nuvens de fumaça rosada. E dos foguetes corriam homens com marretas nas mãos, para modelar aquele mundo estranho até um formato conhecido, eliminando toda a estranheza, a boca cheia de pregos, parecidos a animais carnívoros com dentes de aço, cuspindo-os nas mão ágeis conforme ia martelando as estruturas dos chalés e cobriam os telhados com telhas para bloquear as estrelas reluzentes,  ajeitavam persianas verdes para segurar a noite. (p.134) [grifo meu]
Com a adaptação do planeta Marte ao que os homens entendem por mundo, a relação especular começa a se concretizar através de apagamento das diferenças de maneira ao local se tornar reconhecível para os padrões que os próprios colonizadores carregam em seu universo mental. O medo do personagem Spender então se realiza. Apagada a estranheza da paisagem marciana, resta apagar a estranheza cultural da civilização que viveu em Marte, como aparece no conto "Os músicos", em que um grupo de crianças invade uma cidade marciana para depredar os objetos antes da chegada dos Bombeiros:
Então saíam da casa e entravam em outro, em dezessete casas, sabendo que cada uma das cidades, por suas vez, seria queimada para ser purificada de seus horrores pelos Bombeiros, guerreiros anti-sépticos com páse arcas, levando embora os trapos de ébano e os osso que pareciam palitos de bala de hortelã, separando o terrível do normal, lentamente, mas com convicção. (p.152) [grifo meu]
A cultura marciana, o estranho fantástico ainda não totalmente eliminado do colonizado, passa pelo processo simbólico da purificação pelo fogo a partir dos Bombeiros, uma engenhosa inversão do da função dessa profissão em nossa sociedade. Esses Bombeiros "anti-sépticos", "purificadores" do imaginário, serão reaproveitados como figuras centrais no romance Fahrenheit 451 não mais queimando a cultura do Outro estrangeiro, mas sim do Outro que é temido na própria cultura que se vive.


"O marciano": a gradual conscientização da relação especular com o mundo de Marte

Em "O marciano", um casal de velhos reencontra seu filho morto há muitos anos em Marte. O leitor, já prevenido pelo conto "A terceira expedição", sabe que se trata de um marciano que assumiu a forma do filho morto do casal. E o protagonista do conto, o velho LaFarge, também, mas ainda assim prefere aceitar a projeção de seu amado filho perdido a viver sem ele:
Talvez seja errado ficar com Tom, mas só um pouquinho, enquanto não puder causar nenhum problema nem mágoa, mas como é que vamos abrir mão exatamente da coisa que mais desejávamos, por mais que ele fique só um dia e vá embora, deixando o vazio ainda mais vazia, as noites escuras mais escuras, as noites chuvosas mas úmidas? (p.207)

LaFarge é um Narciso que já possui consciência de que, na verdade, olha para um reflexo de seus próprios desejos quando olha para o "espelho" que é o marciano. Ainda assim, escolhe viver esse momento de felicidade, mesmo que ilusório, de dar forma ao seu grande sonho de ter seu filho de volta. De todos os contos, achei sua situação a mais trágica, pois ele está em um limiar da conscientização dos limites humanos da relação especular com o mundo, sabendo que aquilo que ele vive uma "fantasia" que responde aos seus mais profundos anseios mas não vendo outra alternativa.

Após levarem o filho para passar em uma cidade humana no planeta Marte, o marciano começa assumir as projeções de outras pessoas que circulam nas ruas. Em meio a perseguição que um grupo inicia ao marciano, o velho Lafarge, esperando-o em um barco, chega a seguinte conclusão: 

Por todo o trajeto, o perseguido e os perseguidores, o sonho e os sonhadores, a caça e os caçadores. [...] Todos avançando enquanto aquele sonho ia e vinha, como uma imagem refletida em dez mil espelhos, dez mil olhos, um rosto diferentes para aqueles que estavam à frente, os que vinham atrás, os que ainda não tinham encontrado, os invisíveis. [...] E lá estavam todos eles, no braco, querendo o sonho para si [...] (p.215)
O drama da colonização experimentada nos contos fantásticos de Bradbury ganham, de maneira gradativa desde o conto "A terceira expedição", as dimensões de uma drama humano mais universal, de uma dificuldade narcisística do homem moderno de se relacionar com o mundo. O marciano, simbolizando esse mundo, que na relação narcisística é sempre "novo", que todos querem moldar,  sucumbe e morre frente as varias pressões que sofre para se adaptar ao sonho de todos.

O morte do marciano em "O marciano" marca o início do declínio da colonização terrestre em Marte. O planeta vermelho também "morre" como mundo  ideal projetado pelo colonizador. Com a eclosão da guerra atômica, o sonho acaba e os terráqueos retornam a Terra para lutar e procurar seu parentes, sobrando alguns poucos sobreviventes.

"O piquenique de um milhão de anos": pós-narcisos plenamente conscientes de suas relações especulares com o mundo marciano (e terráqueo)


O último conto, "O piquenique de um milhão de anos", ocorre em outubro de 2026, fechando o ciclo de releitura do mito de Narciso na relação dos terráqueos com a colonização de Marte. Uma família, composta por um casal de três filhos, chega em um pequeno foguete ao desabitado planeta Marte fugindo da guerra que está acontecendo na Terra. Centro-me especificamente na parte final do conto em que o pai, após explicar os seus filhos que a Terra foi destruída e que eles devem construir uma nova vida, leva-os até um rio e apresenta-os aos marcianos que ele havia prometido que mostraria:
Chegaram a um canal, comprido, retilíneo, fresco, molhado e que refletia a noite.
- Sempre quis ver um marciano - disse Michael - Onde eles estão, pai? Você prometeu.
- Ali estão eles- disse o pai, virou Michael e apontou para baixo.
Os marcianos estavam lá. Timothy começou a tremer.
Os marcianos estavam lá, n canl, refletidos na água. Timothy, Michael, Robert, a mãe e o pai.
Da água ondulante, os marcianos ficaram olhando para eles por um longo, longo tempo silencioso... (p.296)

O mitema central reaproveitado do mito de Narciso aqui é o do espelhamento, como vinha sendo trabalhado desde os primeiros contos. Essa família é uma família consciente que chega a Marte para construírem projeções de si mesmos, mas uma consciência qualitativamente diferente da do velho LaForge em "O marciano". Aqui já não há mais espaço para a escolha entre a "ilusão" e  realidade que LaForge ainda tinha. Eles estão em Marte e terão que construir uma nova vida. Mas essa "nova" vida não será construída  ingenuamente, como se algo completamente diferente fosse construído, mas sim melancolicamente, através  da consciência que essa nova vida projetada é esse reflexo nas águas, é os marcianos que gostaríamos de encontrar, é afinal, um elemento de nós mesmos. Assim, há uma saída da situação mítica  alienante de Narciso mesmerizado pelo seu reflexo, mas não há uma saída da relação especular presente no mesmo mito : surge um novo Narciso no leitor, agora consciente que o que vê e anseia no mundo nada mais é que o seu reflexo.

CONCLUSÃO: "Usher II", um manifesto em defesa da imaginação e da literatura fantástica

Pela profundidade simbólica, a ficção científica de Bradbury não é uma mera diversão "pulp". As fantásticas viagens espaciais ao planeta Marte ganham aspecto crítico em relação as politicas coloniais do capitalismo imperialista, que desde as grande navegações projeta o mundo europeu como ideal a custo do apagamento de culturas milenares, aos mesmo tempo que trazem uma profunda visão simbólica sobre a relação do indivíduo como o mundo. Acho que ainda mais do que tudo isso, As crônicas marcianas é um manifesto a favor da fantasia como forma de compreensão de mundo, algo que o tecnicismo capitalista relega sempre a "casa da loucura". Defendo essa ideia a partir da minha  leitura do conto "Usher II".

Em "Usher II", um rico intelectual de nome William Stendhal cria em Marte um ambiente que emula a descrição do castelo descrito no conto "A queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe. Essa construção é uma afronta a uma série de leis terráqueas que buscaram banir toda e qualquer forma de arte em que criaturas imaginárias ou situações  fantasiosas fossem representados. William Stendhal convida todos os integrantes do departamento de Climas Morais, responsável por essa fiscalização e censura do fantástico, para uma festa no seu Castelo de Usher, povoado por criaturas das mais diferentes histórias produzidas dentro da literatura fantástica.

Um a um, esses convidados são mortos em situações literárias fantásticas e substituídos por robôs na festa. Ao responsável pelo departamento, Stendhal prepara um morte que segue a risca o conto "O barril de Amontillado", de Poe. Aos poucos, a vitima de Stendhal percebe que o protagonista está matando todos a partir de trechos retirados dos "livros proibidos". Stendhal então fala a sua vítima o seu erro:
(...) sabe por que eu fiz isso com você? Porque você queimou os livros do senhor Poe sem se dar o trabalho de os ler. Você aceitou a opinião dos outros que achavam que deveriam ser queimadas. Senão, teria percebido o que eu faria com você quando descemos aqui, há um instante. A ignorância é fatal (...) 
O personagem Stendhal "joga na cara" do poder autoritário as forças da imaginação que desprezou. O erro da vítima não é só ter ignorado um conto de Poe que poderia ter salvo sua vida, mas por ter ignorado o poder do fantástico, que permite uma reflexão profunda sobre o indivíduo quando trabalhada por um bom artista. A fantasia surge assim como uma forma de resistência em um momento marcado pelo neo-positivismo, da mesma maneira que surge também em Fahrenheit 451 e em  obras de outras artistas, como no romance 1985 de Anthony Burgess e na graphic novel V de vingança, de Alan Moore e David Lloyd.. As crônicas marcianas é para mim como uma manifesto a favor da literatura fantástica   

Logo, a fantasia fala algo para além de  "loucuras" ou "falsidades". As crônicas marcianas, através e sua apropriação simbólica da relação especular do mito de Narciso, é um exemplo de como a fantasia pode despertar imagens terapêuticas para o imaginário dos seus leitores, tornando-os narcisos mais conscientes da relação que mantem com o mundo de maneira a não morrerem afogados em suas próprias projeções.

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) "...tudo existe para terminar em uma foto": o impacto da fotografia na mentalidade contemporânea para Susan Sontag


"A necessidade de confirmar a realidade e de realçar a experiência por meio de fotos é um consumismo estético em que todos, hoje, estão viciados. As sociedades industriais transformam seus cidadãos em dependentes de imagens; é a mais irresistível forma de poluição mental. Um pungente anseio de beleza, de um propósito de sondar abaixo da superfície, de uma redenção e celebração do corpo do mundo - todos esses elementos do sentimento erótico são afirmados no prazer que temos com as fotos. Mas outros sentimentos, menos liberadores, se expressam. Não seria errado falar de pessoas que tem uma compulsão de fotografar: transformar a experiência em si num modo de ver. Por fim, ter uma experiência se torna idêntico a tirar dela uma foto, e participar de um evento público tende, cada vez mais, a equivaler a olhar para ele em forma fotografada. Mallarmé, o mias lógico dos estetas do século XIX, disse que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa foto."

("Na caverna de Platão", Sobre a fotografia, Susan Sontag)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) "Drácula", de Bram Stoker (pt.1): Literatura é, antes de tudo, forma

Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, 1922,  de F.W. Murnau,
adaptação expressionista de Drácula 

Sempre que começo a ler um livro, tenho o costume de dar uma olhada em blogs e redes sociais para analisar o que os leitores escrevem sobre aquilo que estou lendo. Não faço essa atividade para "guiar" minha leitura, mas sim para perceber como obras (especialmente as mais antigas) são relidas contemporaneamente.  Um rede ótima para ver isso é o Skoob, espaço em que os usuários podem adicionar ao seu perfil o livro que está lendo ou já leu , além do usuário poder inserir uma nota e comentar sobre suas impressões, sendo que ambas as qualificações do livro ficam abertas para outros usuários verem.

Em geral, sempre percebo que as pessoas avaliam as obras pela critério "gostei/ não gostei", o que eu acho ótimo, pois a leitura literária é exatamente isso, prazer. Só tenho percebido que esse "prazer" muito pouco tem se direcionado para questões mais "literárias", eu diria "estéticas". O prazer fica no âmbito do conteúdo da obra, no que está sendo lido, e muito pouco se fala  na maneira como está sendo contado.

Um exemplo sintomático do prazer buscado somente no conteúdo de uma obra literária é Drácula, de Bram Stoker. Passando o olho pelos comentários da obra na versão do selo L&PM Pocket (essa com o Béla Lugosi na capa) no Skoob percebi que os leitores constantemente reclamam da forma como o romance é narrado, em diários escritos por diferentes personagens da romance. Um exemplo: "a narrativa em formato de cartas enjoa um pouco e torna a leitura um tanto quanto cansativa, e quanto a falta de ação...". Mas esse leitor, que entendeu o formato de narração em diário como um romance epistolar (e até acho que parece) gostou do romance: "A obra em si é muito legal" Outros comentários focam totalmente na questão do conteúdo: "um clássico da literatura que revolucionou o mito do vampiro". Em outras palavras, as aventuras do grupo vitoriano liderado por Van Helsin contra o Conde Drácula seria boa, sendo que nessa avaliação não se inclui a reflexão de como Stoker teria revolucionado o mito vampiro.  As reflexões mais próximas disso ficam no nível representacional do personagem Drácula na obra: "Drácula ainda pode ser considerado, ironicamente devido a sua condição de vampiro, o personagem mais humano da trama".

Na sociedade brasileira, com suas atuais políticas públicas de incentivo a leitura, a leitura do conteúdo da obra literária sempre prevalece. Ao meu ver, há um certo esquecimento, por parte dos leitores e de muitos novos escritores, de que literatura, é antes de tudo, forma, ou seja, a primeira característica da literatura como hoje a entendemos é ser uma arte de palavras, impressas em uma folha em branco em que o leitor, de maneira silenciosa, deverá decodificar e interpretar.

Acredito que gostei muito de ter lido Drácula por ter admirado as escolhas formais de Stoker para narrar o horror fantástico, e foram por essas mesmas escolhas que seu romance foi aceito no momento de produção  e relido em outras épocas. O que as pessoas hoje percebem como algo enfadonho, pois sua narrativa em formato de diários é muitas vezes bem cansativa, foi justamente seu fator principal de sucesso, e não somente  inserção de um vampiro no plano do conteúdo do romance.  Acredito que o meu prazer foi estético frente a obra. Para explicar melhor esse meu prazer "estético", narrarei minha própria experiência como leitor de Drácula.

A narrativa não se baseia somente em um diário, possuindo também inserções de textos jornalísticos e de documentos comerciais. Assim, no decorrer do romance o leitor encontra diferentes gêneros textuais intercalados: o diário (escrito originalmente com símbolos estenográficos) do personagem Jonathan Harcker, o procurador que vai até a Transilvânia negociar a compra de uma antiga casa no subúrbio de Londres com o Conde Drácula; o diário da noiva de Jonathan, Mina Murray (também originalmente escrita com símbolos estenográficos); o diário de Lucy Sterna, amiga de Mina que está sendo cortejada por três pretendentes e acaba sendo vítima do Conde Drácula; o diário do doutor John Sewer (originalmente gravado), um dos pretendentes de Lucy; notas, ao fim do romance, escritas pelo punho do Dr. Van Helsing; cartas enviadas entre os personagens; notícias de jornais;  documentos de transações comerciais.

No início do romance, quando a narração finaliza o trecho do diário de Jonathan Harcker contando suas horríveis experiência como hóspede no Castelo do Drácula, passa-se o diário de Mina Murray, perguntei-me  "quem está organizando estes textos?". Não pensava necessariamente em Stoker, o escritor real que escreveu a obra,  mas sim na concepção do organizador da narrativa que estava aos meus olhos. Em termos de estudos literários,  minha pergunta coisa: "quem é o narrador de Drácula?"

No texto de Drácula, o leitor tem a sua frente os textos escritos por personagens narrando suas experiências, então, a principio  seriam vários narradores personagens. Porém, as trocas de um diário ao outro obedece a cronologia das datas registradas no início de cada entrada nos diários, como se alguém tivesse tido acesso a todos aqueles textos previamente e organizado-os em uma ordem temporal. Imaginei que deveria haver alguma explicação, dentro do universo ficcional da obra, de alguém que fizesse essa organização, nem que fosse uma nota ao final do livro. Esse "vazio" que a narrativa deixa em relação em que a organiza/ narra suscitados pelas trocas de diários me permitiu, como leitor, levantar a hipótese que o narrador provavelmente seria algo como o Redator do romance epistolar Ligações perigosas, escrito por Choderlos de Laclos, que organiza as cartas que o leitor vai ler. O Redator de Laclos se apresenta no inicio do livro, então pensei na hipótese de que o "Redator" de Drácula, como não se apresentou no início, se apresentaria no fim.

Os diários começam a se alternar entre o de Mina e o de sua amiga Lucy, intercalando cartas, notícias e  registros de transações comerciais que vão elucidando alguns acontecimentos narrados pelos diários. Essa inserção de diferentes gêneros textuais (ainda que sejam invenções de Stoker, eles obedecem as convenções do gênero jornalístico e comercial) pareceram-me estavam ali dispostos para provar que os acontecimentos cada vez mais fantásticos que as duas personagens narravam em seus diários não eram produtos de suas imaginações.

Minha hipótese inicial sobre o narrador mudou quando lido mais da metade do romance. Após os diários gravados de Dr. Seward (datilografados por alguém que a narrativa ainda não identifica) que narram a transformação de sua amada Lucy em vampira e a chegada de seu  amigo, o heterodoxo psicólogo holandês Van Helsing, todos os personagens se encontram.  E da conversa de Mina (agora Harker, pois casou com o personagem Jonathan) com Van Helsing que compreendi quem estava organizando o texto que eu lia. Era a própria Mina, que reuniu os diferentes registros relacionados ao Conde Drácula produzidos pelos personagens e datilografou-os para todos os personagens lerem da mesma maneira que o leitor agora lia.

A organização desse material por uma personagem que vive os acontecimentos é diferente da situação do Redator de Ligações Perigosas. O romance não é uma história para ser lida somente pelo leitor, mas também para ser lida pelas personagens como prova documental de que o horror fantástico da figura de Drácula é real. Os diários são, como na fala da personagem Mina para Van Helsing, o registro dos acontecimentos "na própria oportunidade em que tal ocorrência se verificou" (STOKER, 2011, p.268), um testemunho fidedigno dos acontecimentos através do registro escrito. A inserção de outros documentos (noticiais de jornais e documentos comerciais), reunidos pelos diferentes personagens, servem como uma corroboração empírica de que os elementos fantásticos que os personagens narram não são produto de sua fantasia, como eu já havia inferido antes. Não há duvidas para os personagens: a união dos diferentes textos de maneira expositiva comprovam que o horror fantástico encarnado na enigmática figura do Conde Drácula é real.

Aqui é necessário uma digressão "histórica", a mesma que fiz nesse momento da leitura. Drácula foi lançado na Inglaterra em 1897, período de auge do que chamado "cientificismo" do século XIX. É o momento em que o pensamento religioso é descartado como forma de explicação de mundo e substituído pela observação empírica da realidade. É a época de impacto do pensamento de Darwin, da ciência positiva e de uma série de avanços na área das "ciências duras". Tal momento histórico do pensamento ocidental descartou o mito e o fantástico como puras invenções, mentiras contadas sobre o mundo que só serviriam para enganar e ludibriar os crédulos. É do cientificismo que deriva a literatura "realista", que busca expressar o real "tal qual ele é".

Drácula é uma expressão artística que busca denunciar os excessos do pensamento cientificistas, da "cegueira" racional frente ao mundo mítico. Ao reler o mito do vampiro, Stoker faz mais do que simplesmente reinseri-lo dentro da literatura ocidental: o romance mostra que a pretensão a compreensão total da realidade através da ciência e da razão não consegue dar conta de elementos ainda "arcaicos" em  nossa mundo, representado pelo vampiro que, saindo da Idade Média, volta a aterrorizar a humanidade em Londres, o centro do cientificismo e do capitalismo imperialista.

Van Helsing é a figura que personifica essa crítica. Ele é um cientista, mas não deixa de ignorar que a ciência tem seus limites, além de perceber que muitas explicações tidas como "científicas" nada mais são que releituras de antigos mitos. Conversando com seu amigo,  Dr. Sewer, um cientistas cético que exita em acreditar nos elementos fantásticos que enxerga, Van Helsing diz: 
 Ah! Essa é a grande lacuna de nossa ciência positiva, que continua eximindo-se e recusando-se a esclarecer todos esses inexplorados ângulos, Ou então, quando pensa que a aborda, limita-se  dizer-nos que nada tem a explicar. Apesar disso, vemos todos os dias tais crenças se multiplicarem e se desenvolverem sempre sob a convicção de que todas elas são realmente novas. Em sua maioria, não passam de rituais primitivos que se fingem criações recentes, como as nossas primas-donas dos teatros de ópera. (p.281-282)
O cientificismo, a ciência positiva e objetiva que o século XIX alcançou, entra em crise frente a ressurgência do fantástico em seu próprio meio. Neste momento da leitura, o ser mitológico vampiro indo morar em Londres de 1890 foi por mim percebido como uma alegoria a crise do cientificismo racionalista, anunciada por outros no mesmo período, como Nietzsche, e consolidada posteriormente com o advento da psicanálise, da antropologia cultural, entre outras novas áreas do saber no século XX. Pensando um pouco em "o que" Drácula traz em sua narrativa, interpretei que vampiro surge aí como um elemento "arcaico" do pensamento Ocidental que, mesmo após as variadas investidas do cientificismo, continua sua vida na modernidade. Essa "sobrevida" do mito (e aí a genial escolha de um morto-vivo para a alegoria) permite relativizar dentro da obra o que os personagens, oriundos das classe média  alta burguesia,  entendiam por "real" e "natural". 

Mas, apesar da crítica a cientificismo, Stoker não abriu mão de contar o fantástico através de elementos realistas de narração. O horror, para ser aceito no final do século XIX, ainda precisa de provas. A possível subjetividade expressa na narração em diários é anulada, seja pela inserção de documentos, que para o período seriam a comprovação empírica da verdade, seja pela própria ideia de que esses testemunhos buscam registrar objetivamente  o que acontece com os personagens ao invés de suas impressões pessoais.

Acho que é aí que está a beleza formal de Drácula: o horror fantástico é aceito pelo leitor pelas "provas" que compõem a própria narração que está sendo lido. "Provas" vão aí com aspas, relacionadas mais a um aspecto de verossimilhança da obra que não fere totalmente os critérios de "verdade" e "realidade" que o leitor tem. O leitor não irá acreditar em vampiros, mas vai entender que no universo do romance existem várias provas que, se surgissem no mundo real, seriam irrefutáveis.

É como prova do que está acontecendo que os textos são lidos  pelos personagens do romance. A junção dos diferentes registros em uma única narrativa tem a função ser o conhecimento pelo qual os personagens irão propor sua ação para enfrentar o monstro. É Mina Harcker que percebe a função terapêutica, eu diria catártica, do texto que organizou, vendo dois dos pretendes de Lucy lendo-o e eliminando o medo do horror que até então sentiam:
O destitoso Arthur pareceu-me bastante mais animado do que tinha estado desde que Lucy adoecera, e o próprio Quincey voltou a ser quase tudo o que era em matéria de boa disposição e espírito. (p.347)
A experiência do horror, organizada em uma narrativa, funciona como elemento central da passagem de Drácula do modo dramático, onde os personagens se debatiam sem compreender o que aconteciam a sua volta, para o modo épico, em que os personagens tornam-se "heróis virtuosos" que se armam para enfrentar o monstro. É dessa maneira que o personagem Dr. Seward percebe o efeito da leitura desse texto nos outros personagens: 
Todos os demais haviam lido tudo. Assim, quando nos reunirmos no escritório, estaremos a par de todos os fatos devidamente esclarecidos para traças  todo o plano de combate contra o nosso misterioso e temível inimigo. (p.349)

Foi aí que eu entendi que a forma do romance era fundamental para entendê-lo. A "entendiante" narrativa em formato de diário e a profusão de outros gêneros textuais intercalados entre eles servem para angariar o cético leitor do século XIX. Mais do que isso,  essa forma traz implícita a função de narrar o horror: organizar uma narrativa coerente sobre nossos medos é já uma forma de superá-los. A linguagem realista, a forma pela qual Stoker resolveu contar  a história de uma vampiro da Europa Central indo para Londres, foi sua arma técnica para fazer o horror deixar de ser algo "infantil" para passar a ser aceito pelos leitores como algo a ser temido mas que, através da ação terapêutica da narração e da leitura, seria vencido. 

Vejo assim Drácula como um percursor da remitologização da literatura proposta pelos escritores vanguardistas do século XX. Ao meu ver, essa percepção formal da narrativa não é exercício de "estudante de Letras", como já vi muitos falarem, pois ela é fundamental para entender a construção do moderno mito do vampiro: foi primeiramente pela forma como o mito foi contado em Drácula que ele se tornou "moderno". Além disso, atentar para a forma que está sendo narrado e respeitar e degustar com maior profundidade um dos elementos centrais que torna, a literatura uma arte.

Creio que esse tipo de leitura, que presta atenção nos aspectos formais, pensando não somente em "o que está sendo contado" mas também em "como está sendo contado", é uma mudança qualitativa da percepção do literário dentro da conjuntura atual. Talvez seja difícil, principalmente porque as apropriações contemporâneas diretas de Bram Stoker são narrativas formalmente péssimas, como a "rainha" do romance vampiresco Anne Rice e a última febre vampiresca do momento, Stephanie Meyer. São narrativas que, ao invés de obrigar o leitor a pensar no "como", focam somente no "o que", não exigindo reflexão e proporcionando prazer barato. Não é por "pedantismo" ou "elitismo" que professores de literatura chamam esse romances como "de massa". Esse produtos culturais, ainda que expressos em linguagem literária, não visam estimular o leitor a refletir sobre a literatura como arte, sendo mais um divertimento grosseiro a ser consumido como se vê um filme block buster no cinema. Ainda não estimularem esse tipo de reflexão, a literatura perde sua possibilidade de estimular  pensamento crítico para se tornar mera distração. 

Para finalizar essa primeira parte, gostaria de salientar o subtítulo desse post. Para mim "literatura é, antes de tudo, forma". No "antes de tudo" eu quis deixar explícito que literatura para mim não é só como é contado. Para mim, literatura é também simbólica, uma expressão artística que busca significar algo profundo para seus leitores para além dos significados aparentes que ela traz. Minha própria leitura "formal" já traz elementos que dizem respeito a sociedade que o romance foi publicado e em significações possíveis de serem apreendidas pelo leitor.

Em meu próximo post, pretendo ampliar alguns aspectos simbólicos já apontados na forma do romance pensando no mito do vampiro tal qual eu percebi em minha leitura de Drácula.

Referência

STOKER, Bram. Drácula. Porto Alegre: L&PM, 2011. Tradução de Theobaldo de Souza. 





sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

(CITAÇÕES ALEATÓRIAS) Devaneios sobre Matrix: por uma terceira pílula


"(...) a escolha entre a pílula azul e a vermelha não é verdadeiramente uma escolha entre ilusão e realidade. É claro que a Matrix é uma máquina de produzir ficções, mas são ficções que já estruturam nossa realidade. Se tirarmos da realidade as ficções simbólicas que a regulam, perdemos a própria realidade.

Eu quero a terceira pílula.

Mas o que é a terceira pílula? Certamente não algum tipo de pílula transcendental que conduza a uma falsa experiência religiosa do tipo fast-food, mas uma pílula que me permita perceber não a realidade por trás da ilusão, mas a realidade contida na própria ilusão."

(Slavoj Zizek no documentário "The Pervert's Guide to Cinema")