terça-feira, 19 de junho de 2012

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) Bachelard, repercussão e o Übermensch bandeiriano


Der Wanderer über dem Nebelmeer-  Caspar David Friedrich- 1818 


Acho que uma das ideias que mais me fascinaram em Bachelard é conceito de repercussão, que, dentro de sua proposta para uma "fenomenologia da alma", trata da apropriação da poesia pelo leitor. Li  sobre esse isso na introdução do A Poética do Espaço, onde o filósofo  trata a poesia como possuidora de uma "alotropia" fenomenológica que se apresenta em dois níveis: 1) o da ressonância, em que as imagens do poema dispersam-se pelo mundo, ouvimos o poema; 2) o da repercussão, em que as imagens do poema se  aprofundam na nossa experiência, o poema é nosso.

Para mim, o conceito de repercussão explica porque ficamos mesmerizados frente algumas obras artísticas. Tal processo, onde ocorre uma "inversão do ser", em que "o ser do poeta é o nosso ser", o poema "nos toma por inteiro" despertando a "criação poética na alma do leitor". É como ler algo que atinge de tal maneira as "profundezas" do nosso inconsciente que aquelas palavras se tornam nossas e passam a ter significado como se nós mesmos tivéssemos escrito.

É uma exposição bem econômica do que a repercussão bachelardiana significa. Ainda assim, você que me lê agora, se é obcecado por arte em geral, como eu, já pensou em algum  romance, poema, música, filme, pintura, etc, do qual constantemente revisita para dele/dela se apropriar de tal maneira que a obra já não é somente feita para você, e sim feita por você, ainda que seu papel tenha sido aparentemente de receptor.

Em meu atual devaneio (para novamente homenagear Bachelard), isso é resultado da fantástica característica da Arte de chamar o receptor para concretizar a obra (Wolfang Iser?). Nessa perspectiva, a Arte deixa de ser uma mera comunicação unidirecional para se tornar interativa. O receptor participa, cria e, se as imagens (no sentido bachelardiano) resultantes simbolizarem algo para este sujeito, respondendo algumas questões presentes em seu inconsciente, elas deixam de simplesmente ressonar no nível do intelecto para repercutir nas "profundezas da alma".

Um exemplo que eu costumo dar do processo de repercussão na minha trajetória de leitor é o romance O Estrangeiro, de Albert Camus. O arquétipo de "outsider", na perspectiva niilista que Camus coloca no personagem-símbolo Mersault, é algo que eu ainda não consigo intelectualizar plenamente. Já li esse romance algumas vezes e, ainda que eu aponte algumas questões, tal obra vai para além de uma simples ressonância, no sentido de compreensão, estando muito mais relacionada ao nível da repercussão: esse romance é meu, não o escrevi mas é como se eu o tivesse escrito.  

Outro bom exemplo, que tem me consumido há pelo menos uma semana e motivou esse post, é o seguinte poema de Manuel Bandeira, presente no livro Lira dos Cinquen'anos:


Soneto inglês nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e do pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer nem de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.


Leio e releio esse poema como a uma insight do Übermensch nietzschiano pela ótica de Bandeira. Eu particularmente não li nada sobre a relação do poeta brasileira com o filósofo alemão, e também isso  é secundário, pois mais me  importa aqui que eu fiz tal relação. 

A primeira vez que li esse poema foi como cair em um abismo. Li e reli e reli e reli e continuo relendo e a cada nova leitura novos sons,  novas imagens, novas percepções e novas perguntas surgem no meu ser. 

Permitindo-me uma paráfrase alucinada do poema, é a aceitação da incontingência da vida não por uma moral escrava e submissa, mas por uma moral aristocrata e altiva; é a dor surda transformando-se em grito; é o fim de uma vida frugal e mundana a volta da condição que nos faz humanos;  é o fim da esperança, do espanto e do desejo: a ascese de um santo sem a perspectiva de além-mundo. É, por fim, a morte.

Esse final é maravilhoso sonoramente. Não raro me surpreendo recitando em voz baixa "[...] que a vida/ não vale a pena e a dor de ser vivida." A estranheza de sua construção me joga para um verdadeiro devaneio onde esses versos já não são mais de Bandeira, são meus.

Para concluir reafirmando o que Bachelard já escreveu, penso constantemente que esse é o poema que eu gostaria de ter escrito e que nunca escreverei. Nada mais bandeiriano: é a "vida inteira que podia ter sido e não foi". Mas, pela repercussão, compreendo que não preciso escreve-lo, pois já o escrevi e ainda por muito tempo o reescreverei.