quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

(IMAGINÁRIO EM PALAVRAS) Literatura e Música: no nível das sensibilidades

Sensibilidades é atualmente um conceito comum na História Cultural, principalmente entre historiadores que trabalham com as Artes em geral. A enfadonha Pesavento, que ajudou a divulgar essa corrente historiográfica no Brasil, definiu sensibilidades no seu História & História Cultural  como um  "(...)núcleo primário de percepção e tradução da experiência de mundo. O conhecimento sensível opera como uma forma de apreensão do mundo que brota não do racional ou das elucubrações mentais elaboradas, mas dos sentidos, que vêm do íntimo do indivíduo." (PESAVENTO, 2006, p.46)  Acho muito vago a definição dela. Da leitura de seu livro fica a pergunta em como captar esse "conhecimento sensível": sua proposta é um fraco coquetel metodológico que mistura Ginzburg, Walter Benjamin e Clifford Geertz de maneira pouco convincente. Digo pouco convincente não por não ser possível a relação, mas por ela ter sido fraca mesmo, algo que tem raiz no modismo que foi tão característico dessa historiadora. De qualquer forma, sempre achei a Arte, em específico a Literatura e  Música, uma área privilegiada para compreender uma época mais a fundo. 

Ao meu ver, pensar na relação entre a Literatura e a Música não é  necessariamente pensar em intertextualidade, como na relação entre a poesia e a canção. Apesar de serem linguagens totalmente diferentes, penso na relação entre o escrito e o sonoro no nível das sensibilidades, entendendo esta como as concepções de Arte e de mundo que escritores e músicos possuem em comum sendo expressas através de técnicas específicas de suas áreas. Resultam disso obras representativas de determinadas idéias e sensações de um período . Um exemplo: em determinado trecho do Formação da Literatura Brasileira, de Antônio Cândido, o crítico relaciona o equilíbrio arcádico com a racionalidade da composição harmônica e melódica da música clássica. Eu, que não sou um grande conhecedor de música erudita, resolvi catar na rede algo do Haydn, que eu sabia ser o maior exemplo de música clássica. Comecei a escutar seus Quartetos de Cordas enquanto lia o volume 1 do Formação da Literatura Brasileira e me ficou muito marcado a relação entre a convenção bucólica e a polidez expressa pelo vienense em suas músicas, típicas para se dançar, de maneira recatada e contida, em um salão europeu da segunda metade do século XVIII. Empolgado com as relações que comecei a fazer, li o volume 2, onde Cândido trata do Romantismo brasileiro, escutando os arroubos musicais de Beethoven. Para além de me ajudar na concentração (música erudita é ótima para ler), as concepções estéticas transmitidas sonoramente por esses compositores me ajudaram a compreender os dois movimentos literários em um nível que acredito ser mais profundo e subjetivo: algo como sentir o que é ser árcade ou romântico.

Minha relação com Proust exemplifica melhor ainda o que quero dizer. A primeira vez que li No Caminho de Swann fiquei imaginando como seria a fictícia sonata de Vinteul que maravilhou Charles Swann e chegou a ganhar um ensaio de Levy-Strauss no Olhar, Escutar, Ler. Como nunca havia escutado músicas do período Belle Époque, imaginei algo apoteótico como a melodia que todo mundo assobia da 9º Sinfonia de Beethoven. Na livre adaptação cinematográfica de O Tempo Redescoberto, do cineasta chileno Raoul Ruiz, há uma versão da sonata do compositor de  música para cinema Jorge Arriaga. 


A primeira vez que vi esse vídeo fiquei pasmo com o quão dissonante é a música, algo totalmente diferente da "melodia apoteótica" que imaginei. Essa melodia é semelhante a última parte da sinfonia La Mer, de Claude Debussy, seu trabalho mais conhecido. Para muitos, a associação talvez seja óbvia, pois qualquer biografia de Proust fala de sua admiração por Debussy, mas até então eu não sabia disso. Comecei a escutar tudo que encontrei do compositor. Sua música me deu uma compreensão do estilo Proust bem diferente da que tive na primeira vez que o li: vejo agora tanto o escritor quanto o compositor francês quebrando com as maneiras tradicionais de suas artes, um  ampliando o simbolismo e o mergulho no indivíduo inaugurado por Dostoievski e outro dissolvendo a harmonia e a melodia clássica. Ambos buscando uma nova linguagem para expressar a subjetividade humana, na gênese do conturbado século XX, na vanguarda do que virá a ser o Modernismo. Como no exemplo que dei do livro do Antônio Cândido, a relação dos dois artistas me fez sentir no limite da sociedade Belle Époque.

Esse papo sobre sentir uma época na combinação de Música e Literatura pode parecer muito impressionista (de fato o é), mas é algo próximo do que o cineasta Ingmar Bergman uma vez falou sobre o cinema e a música: "Ambos afetam nossas emoções diretamente, não pela via do intelecto". Experimente ler Fitzgerald escutando Earl Hines e Original Dixie Jazz Band, Mario de Andrade escutando Villa-Lobos, William Gibson escutando Kraftwerk. Para mim vale até algumas associações temporalmente anacrônicas mas culturalmente lógicas, como ler Baudelaire escutando Joy Division, Camus escutando The Cure, Kerouac escutando Bob Dylan, Bukowski escutando The Clash (sempre associei o Velho Buk ao movimento punk, certamente ele odiaria). Para além do esforço racional de reproduzir mentalmente as imagens e climas que esses escritores criam, essa atividade estimula minha imaginação e me deixa um passo mais próximo desses períodos, tão diferentes do atual.

(Uma curiosidade inútil: escutava Stockhausen enquanto escrevia isso)