sexta-feira, 26 de julho de 2013

(IMAGINÁRIO EM QUADRINHOS) "O Inescrito", de Mike Carey e Peter Gross: mito, literatura e quadrinhos (pt.1)




O Inescrito na linha editorial da Vertigo

Lucifer n.1
Em dezembro de 2012, o selo Vertigo no Brasil, pela editora Panini, começou a lançar em formato de encadernado a série O Inescrito, de Micke Carey e Peter Gross, a mesma parceria artística de série Lucifer, derivada do universo ficcional de Sandman.

O inescrito conta a história de Tom Taylor,  o modelo de seu pai, o renomado escritor Wilson Taylor, para a criação do personagem bruxo  de sucesso mundial "Tommy Taylor" (ao estilo Thimoty Hunter e Harry Potter). Wilson Taylor, artista recluso ao estilo Ingmar Bergman, desapareceu há alguns anos sem entrar em contato com o filho e deixando a série de literatura fantástica Tommy Taylor sem conclusão após 13 livros. Tom vive da divulgação das obras do pai, que possuem uma legião gigantesca de fãs, até que o acusam de não ser o filho verdadeiro de Wilson. A busca sobre a sua verdadeira identidade, busca essa que vai para os limites do fantástico quanto mais ele se identifica com o personagem ficcional do pai, é o tema que da unidade a série que ainda continua nos Estados Unidos.

O pergunta que move a história de O Inescrito é o seguinte: qual é o poder da ficção, da literatura? Contar e ler histórias tem somente a função de diversão ou é algo mais? Com estas indagações, Carey e Gross iniciaram a série que se insinua como a sucessora de uma tradição de sucesso da linha editorial da Vertigo, que tomou forma em Sandman,de Neil Gaiman,e ganhou estabilidade com Fábulas, de Bill Willigham. 

Sandman Edição Definitiva vol.1
Sandman é uma história de uma entidade atemporal que seria responsável pelo Reino do Sonhar, espaço extrafísico de onde emanariam as forças oníricas que alimentam todas as histórias. Fábulas é uma história sobre os personagens dos contos de fada se exilando no mundo real devido a invasão de um inimigo desconhecido às Terras Natais, um espaço extrafísico em que todos os personagens literários de todas as culturas vivem. 

Fábulas v.1- Lendas no Exílio
Em Sandman o Reino do Sonhar é uma metáfora declarada do conceito de inconsciente coletivo de Carl Jung, da noção de que todas as narrativas que contamos, dos antigos mitos a literatura, derivam do instinto humano de sonhar o mundo. Fábulas avança o conceito de Reino do Sonhar , criando o universo das Terras Natais como uma metáfora que se aproxima do conceito o de Imaginário de Gilbert Durand, da ideia de reunir em um conceito de maneira ampla e atemporal o conjunto de todas as histórias compartilhadas em todos os tempos que contamos e recontamos, dos mitos aos contos de fadas e literatura contemporânea.

Tanto em Sadman quanto e Fábulas os quadrinhos já estão há anos luz dos simplificados panteões de heróis da Era de Ouro. Não há mais personagens com roupas colantes e motivações duvidosas. Há protagonistas fantásticos com suas próprias ambições que muitas vezes passam por cima do nosso pobre universo mortal. É o avanço dos quadrinhos para a fundação de verdadeiras mitologias contemporâneas que Alan Moore inaugurou com sua releitura gótica e fantástica de Monstro do Pântano.

É essa tradição dos quadrinhos adultos anglo-americanos que O inescrito busca continuar, tradição esta que este que agora escreve admira demais. É a tradição que busca uma no quadrinhos profunda imersão no universo literário do fantástico e do maravilhoso, mas uma imersão que não deixa de incluir uma reflexão racional dentro da narrativa sobre qual é a função desse fantástico e desse maravilhoso para o homem.

Dentro dessa tradição, O Inescrito é um novo passo, que se vale da erudição de Carey, que eu já tinha percebido lendo Lúcifer, para refletir sobre a importância  do mito e da literatura para o homemaproximando inteligentemente a literatura com o mito sem perder de vista os aspectos da cultura contemporânea, ao mesmo tempo que reflete sobre os perigos do mito e da imaginação quando utilizada para a alienação.

A forma de O inescrito: a arte de Peter Gross e os "ruídos" da Era da Informação na linguagem dos quadrinhos

Eu conheço o trabalho de Peter Gross de Os Livros da Magia e Lúcifer. Acho ele muito bom, mas especialmente em O inescrito  ele consegue alcançar uma correlação entre  forma e o conteúdo que eu acho que merece atenção.

No decorrer dos números da série, a história dos livros do bruxo Tommy Taylor é contada em paralelo as aventuras de Tom. Carey originalmente pensou em inserir essas narrativas em forma de texto literário.  Gross resolveu abraçar o desafio de transpor o ritmo do texto literário para a linguagem dos quadrinhos. O resultado é surpreendente.

Na narração das aventuras do bruxo Tommy, as descrições do cenário foram suprimidas, apesar de a narrativa em terceira pessoa prevalecer em cada quadro. Essas narrações não aparecem na tradicional "caixa" utilizada nos quadrinhos, estando dentro da própria cena. Os diálogos ficam inseridos nos balões e, quando comentários do narrador aparecem entre uma fala e outra, eles são inseridos no quadrinho entre os balões. Com essa relação entre a forma escrita da literatura e a forma dos quadrinhos, a sensação que tenho  é de estar lendo os livros das aventuras de Tommy Taylor, sendo os quadrinhos as imagens que minha imaginação constrói do que é narrado.

Gilbert Durand, em O Imaginário, alerta sobre os o "congelamento" que a imagem imagética (a imagem "realista" da máquina fotográfica) pode causar a imaginação. Gross é um artista que está longe desse perigo. Além dessa ótima relação formal que ele estabelece entre a linguagem literária e linguagem dos quadrinhos, o estilo de desenho de Gross está muito mais próximo do "icônico" e do "abstrato", para utilizar os termos do quadro semiótico aplicado aos quadrinhos proposto Scott McCloud em Desvendando os quadrinhos.

Gross não está preocupado com o "realismo":  tanto no desenho dos personagens quanto no do cenário muitas vezes há somente traços mais gerais para "gestalticamente' sugerir pessoas e ambientes. O traço mais simples dele já tinha me marcado em Lúcifer, mas em O Inescrito essa simplicidade possui forte relação com  conteúdo.

O Inescrito é uma história fantástica, e o fantástico entra tanto no conteúdo quanto na forma, pois o "icônico" é o "abstrato" afastam a neutralização da imaginação que a  imagem imagética causa pelo seu "realismo".

Um outro elemento interessante na forma de O inescrito é a inserção de "janelas" de web com notícias e fóruns de discussão sobre o que o leitor lê durante as aventuras de Tom. Nessa história em quadrinhos, a forma insere os rúídos da Era da Informação. Em algumas partes de O inescrito, sinto como se estivesse lendo os quadrinhos em uma janela do computador enquanto acompanho em outras janelas do computador comentários sobre os acontecimentos, algo que o pessoal das gerações mais novas está acostumado a fazer.

Essas inserção do visual digital do computador nos quadrinhos não é gratuita. Em paralelo a história fantástica que o leitor acompanha nas páginas de O inescrito, os ruídos digitais demonstram a devoção quase "religiosa" que os fãs de Tommy Taylor em relação a Tom . A sociedade de O Inescrito vive com em relação ao personagem Tom como os antigos viviam com seus mitos, porém essa relação não se dá mais em torno de uma fogueira, mas sim em frente a tela de um computador. Lendo as discussões pela internet que a história em quadrinho insere no decorre da narrativa, é perceptível que Tommy/Tom Taylor é um personagem mítico, de profundo alcance simbólico na imaginações de milhões de seus leitores, e vem em Tom o seu ídolo ficcional encarnado no mundo real.

Tom é uma espécie "Jesus Cristo" do século XXI, o Verbo tornado em carne versão 2.0 que "roda" pela plataforma digital.  Essa uma das grandes sacadas de Carey e Gross. A inserção do digital em O Inescrito ressalta que, mesmo em um mundo altamente modernizado, o pensamento mítico está sempre presente. Um exemplo da união de estruturas  "sagradas" do pensamento mítico com estruturas "profanas" da tecnologia moderna na história é o culto criado na internet "Tom é Tommy", que o leitor acompanha se alastrando pelos fóruns de discussão como um típico viral digital

No próximo post da coluna IMAGINÁRIO EM QUADRINHOS, refletirei sobre os aspectos do conteúdo de O inescrito. Seguirei na ideia Tom como um "Jesus Cristo" do século XXI. Para mim, na história deste quadrinho Tom carrega o simbolismo de um redentor, mas de um redentor longe da conotação conciliadora judaíco/cristã, sendo um símbolo de enfrentamento frente aos poderes dogmáticos que pretendem controlar as possibilidades infinitas da imaginação humana. Assim , demonstrarei como vejo o personagem Tom se aproximando miticamente das figuras de Prometeu e Lúcifer (tal como lidos pela geração romântica) apontando algunse elementos que Gross e Carey repetem constantemente na narrativa dos três encadernados até agora lançados no Brasil.